quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Litania para o Natal de 1967


por David Mourão-Ferreira


Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Metamorfose

por Jorge de Sena



Para a minha alma eu queria uma torre como esta,
assim alta,
assim de névoa acompanhando o rio.

Estou tão longe da margem que as pessoas passam
e as luzes se reflectem na água.

E, contudo, a margem não pertence ao rio
nem o rio está em mim como a torre estaria
se eu a soubesse ter…

uma luz desce o rio
gente passa e não sabe

que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem

as nuvens não passem
tão alta tão alta

que a solidão possa tornar-se humana.





quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Poema das coisas belas

por António Gedeão

As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na alma dos homens, por que motivo serão belas?
E belas, para quê?
Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo. Derrama cores porque os meus olhos vêem. Mas por que será belo o pôr Sol?
E belo para quê?
Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas, mas só são coisas quando coisas percebidas, por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?
Se acaso as coisas forem coisas em si mesmas sem precisarem de ser coisas percebidas, para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?